Plantio

Desde criança eu ouço, a vida é cheia de ensinamentos, é só prestar atenção. O tempo passa e a gente não presta atenção e percorre vários caminhos, às vezes árduos para buscar explicação para aquilo que queremos e não temos (ou vice-versa), não entendemos ou não sabemos lidar. Ainda bem que existem os amigos e as taças de vinho pra gente desabafar… E no fim descobrimos que é nas coisas mais simples, aquelas que fazem parte do nosso dia a dia, que se escondem as respostas que procuramos.

Sempre fui uma curiosa pelo autoconhecimento, por terapias e tratamentos alternativos. Descobri cedo, quando adolescente, o poder de cura da homeopatia; depois vieram os antroposóficos, a radiestesia, o reiki, a acunpuntura… Há 15 anos descobri a yoga e nunca mais parei de praticar. Mas a verdade é que, foi sempre na natureza que busquei, encontrei (e encontro) respostas para as minhas caraminholas. A natureza que sempre me presenteou com o meu reencontrar… dar um boot sabe? Aquele restart que a gente precisa dar no computador vez ou outra. Foi praticando mergulho, um vôo de parapente, alguns trekkings desafiadores, até passar um simples dia na praia, em comunhão comigo mesma, tomar um banho de cachoeira, e mais recentemente, montar a cavalo.

Até que, foi por essas linhas que a vida escreve (e a gente escreve junto), em um momento que buscava algumas respostas, acabei conhecendo o Centro de Dharma, um centro de estudos, cursos e ensinamentos budistas. Com ele, veio a Fundação Lama Gangchen para Cultura de Paz, da qual me tornei voluntária há cerca de três anos, e foi este desdobramento de caminhos, que me levou para a vivência do Plantio Coletivo.

Não é necessária nenhuma preparação ou conhecimento anterior, mas sim, é importante ir de coração aberto. Porque trata-se de uma vivência pessoal mas também em grupo. As pessoas cozinham juntas, compartilham alimentos, tarefas, sentimentos e dividem o mesmo espaço, inclusive quartos e banheiros (e diga-se de passagem, são impecavelmente simples, arrumados e de bom gosto). Há poucos quilômetros de São Paulo, o sítio aonde acontece o plantio, é um lugar pode-se dizer abençoado. Dá pra sentir a atmosfera de tranquilidade, a natureza é rica e bebe-se água da torneira.

As atividades começam no sábado à tarde. As pessoas vão chegando e se organizando, dividem as tarefas e começam a preparar o jantar – uma sopa vegetariana. Dois caldeirões estão no fogo e as pessoas vão acrescentando os ingredientes do dia: abóbora, batata doce, castanhas, cebola, ervas aromáticas, vagem colhida no próprio sítio. A mim coube cortar um grande maço de capim santo que foi servido como um delicioso suco refrescante, antes de nos recolhermos às 11 da noite.

Enquanto a sopa trabalhava, os anfitriões, ou coordenadores (um casal, ela psicóloga e psicoterapeuta, ele consultor em agrofloresta e permacultor), fazem a apresentação do grupo e o tema desse plantio: como cultivar a sensopercepção. O grupo é formado por 20 ou 25 pessoas, todos estão sentados descontraidamente no chão, em futons e almofadas, mas atentos às explicações dos nossos condutores. Uma aranha passeia pelo chão, mas ninguém a mata, até que nosso coordenador a recolhe delicadamente e meio como mágica a coloca de volta na natureza (alguns suspiros de alívio, inclusive meus).

Como boa aluna, não queria perder nada e lá estava eu com meu caderninho e celular pronta para anotar tudo. De repente relaxei e pensei ora mas se estamos falando de sensopercepção, vamos sentir mais, o que isso significa, e ouvir principalmente. Ponderei, era mais importante estar ali, presente naquele momento, e não no meu caderninho.

A exposição do tema acontece, e claro, temos dúvidas ou muitas vezes nos identificamos com um ou outro trecho. Queremos respostas! Todos estão animados, querendo mais… mas famintos também. Antes do jantar assistimos um filme, um curta. E o filme compensa a espera pelo prato de sopa. Trata-se da história de uma fotógrafa cega, que volta a enxergar graças a um transplante e as consequências a partir daí no olhar… Tudo muda a partir do momento em que ela passa a ver, ou enxergar, talvez através de possíveis pré-julgamentos… Quantas vezes fazemos isso no nosso dia a dia, e não nos damos conta que estamos vendo as coisas como queremos ver e não como elas são exatamente?

Chega a hora então do jantar que acontece em um grande sala onde são servidas as refeições. O clima é leve, todos conversam e a sopa está maravilhosa. São servidos pães integrais e sem glúten (alguns feitos pelos próprios participantes) e queijos. Tudo delicioso. Alimento para o corpo e para alma.

A noite termina depois que assistimos ao filme principal que vai de encontro ao tema – um documentário sobre a importância da música no resgate da identidade de idosos em asilos nos EUA. Entre risadas, suspiros, silêncios, todos se emocionam. A vontade é passar a noite ali conversando sobre o filme, mas o dia seguinte começa cedo, e antes de nos recolhermos é servido o refrescante suco de capim santo (aquele que eu cortei!), e seguimos então para os quartos que foram divididos em grupos. Estamos em cinco mulheres no quarto e as luzes se apagam antes do relógio passar da meia-noite.

São 7 da manhã e ouço o sino tocar. Apesar de dorminhoca confessa, estou animada em começar o dia e levanto sem preguiça. Como no dia anterior, todos vão se reunindo na cozinha e na sala de refeições para preparar o café da manhã. Cada um leva sua contribuição e a mesa se mostra uma fartura só.

Chega a hora de seguir para o plantio. Caminhamos até o local onde iremos trabalhar. E esse é o momento de ativarmos nossa sensopercepção, ficando em silêncio e sentindo a natureza. ora de estar presente. O sol está forte, e nosso coordenador tem o cuidado de designar uma tarefa leve para que não soframos com tanto calor, “vocês e as plantas”, explica ele, sim porque as plantas afinal são parte integrante e principal da vivência. E naquele dia, não será um dia de plantar, mas sim de podar. Sim, podar – um capim crescido ali, outro ali e uma árvore simpática, alta, meio magrela com grande folhas. Os margaridões, segundo ele nos explica, tem folhas ricas em proteínas para o solo. Recebemos as orientações finais e com as ferramentas de poda e luvas, começamos nosso trabalho.

Dividir o espaço no mato, assim, sair cortando plantas, não é assim tão fácil como parece. Alguém poda ali, outro aqui. No começo sinto que achei um espaço e saio fazendo a poda como foi ensinado. Mas de repente encontro um galho e outro e vejo umas mudinhas, acho melhor não cortar… e esse galho está tão bonito, vai ver alguém já passou aqui e resolver deixar, e não corto. E de repente em vez de podar estou coletando coisas… um galho solto com uma coisa estranha presa nele, outro ali, só um pedaço de madeira que penso em levar de lembrança do meu primeiro plantio… chegou o momento que não sabia mais o que podar ou se queria podar. Dei voltas em círculos. Estava meio perto do nosso anfitrião e ele deve ter percebido que eu estava meio perdida e perguntou se estava tudo bem, respondi, “não sei mais o que podar. Acho que não tenho mais vontade ou estou encontrando dificuldade em podar”. Não lembro as palavras exatas, mas a resposta dele foi mais ou menos assim, que o sentido era esse, que assim como na vida, a gente tem que aprender a fazer escolhas, e cortar coisas, aprender a dizer não, sem machucar, sem ferir, mas dizer não é aprender a lidar com isso. Podar tem também o sentido de liberar espaço, ali na mata, de deixar a luz entrar. E até mesmo os galhos e folhas que foram cortados e repousavam agora sobre o chão tinham seu propósito, de adubar a terra… “a morte é abundância também”, disse ele.

Então me dei conta. Claro que era, é, difícil pra mim, tenho dois 6 na minha numerologia, meu ascendente é Câncer, anyway… Reconheço, meu ser é um ser que guarda, coleta, coleciona. Conheço poucas pessoas que têm amigos, e os mantém, há mais de 20, 30 anos. E os ingresso de cinema, dos shows, dos melhores momentos da viagem, os bilhetes de trem?! E por aí vai. Aprendi a me desfazer de roupas, sapatos e coisas de uma maneira em geral. Até de ideias e pensamentos. Mas as lembranças… o que eu vivi, como, com quem, quando… isso sempre foi difícil pra mim. E as caixinhas foram aumentando. Primeiro na casa de minha mãe, depois na minha. Fiquei um tempo em silêncio, tendo essa conversa comigo mesma… sim Kareen, você tem que reconhecer, podar aquilo que está impedindo você de crescer, ou que não faz bem, e cortar os galhos que impedem de respirar novos ares e vão se tornando um verdadeiro emaranhado na vida.

O dia termina com um delicioso almoço, também colaborativo, organizado e preparado por todos.
Nossos anfitriões coordenadores fazem o fechamento para que todos compartilhem sua vivência. É um momento de risadas, confissões, perguntas, emoção.

Hora de voltar pra casa e colocar em prática – prestar mais atenção no meus sentidos, nos meus instintos, no que faz bater meu coração com alegria – “a sensopercepção é a experiência de existir“. Há que se perceber o tempo de poda e o tempo de plantio. Cultivar e acreditar que a natureza é sábia e tem as respostas para nossas aflições e dúvidas. É só nos conectarmos.

Vida de Clara Luz
com Bel Cesar e Peter Webb