Como as histórias me levaram para a culinária

Desde pequena sou uma entusiasta dos livros. Todos os livros. Da minha infância remanescem flashes de memória: pai, pai, me dá esse livro? Sempre puxando a camisa dele. Assim como pelos livros, também sou aficionada pela comida e todo seu entorno. Não era assim. Cresci lendo os gibis da Mônica, ademais os do Mickey Mouse – quando me considerei mais crescida para tal -, posteriormente conheci os livros de misticismo típicos dos anos 90, sem faltar, é claro, o “mago” Paulo Coelho, onde li-os concomitantemente com a tradicional literatura juvenil compartilhada nas escolas. No final da adolescência dei “tchau, até logo” e, ufa!, cheguei na literatura clássica, moderna e nos livros de filosofia. Nesse terreno permaneci por anos e anos, onde me encontrei e me perdi diversas vezes – mais financeiramente que simbolicamente, afinal, meus maiores arrombos no cartão de crédito foram feitos com livros.

Minha família é muito italiana, o que quer dizer que todo mundo come muito bem e cozinha muito bem, menos eu até dois anos atrás. Minha avó é do tipo que cria e mata as galinhas que se alimenta até hoje. Apenas uma das atividades contíguas: faz pão quase todo dia; planta, colhe, torra e mói seu próprio café; faz suas próprias massas (macarrão, nhoque, lasanha) etc. Chefs de cozinha, donos de restaurantes e bares também habitam minha realidade e, mesmo assim, mesmo com arredores tão ricos, nada disso me fisgou para a cozinha. Me interessava, é claro. Observava, é claro. Mas a ponte foi construída através das histórias. Tanto pelas que ouvia, contadas aqui e ali, entre uma cozinha e outra (assunto para outro post), quanto as que sublinhava em livros.

Mais ou menos assim:

Na literatura de Alejandro Zambra senti uma alegria carinhosa ao me atentar às visitas constantes do “chá” nos diálogos; em Bonsai, um de seus livros, o autor também nos traz à memória o escritor Marcel Proust que inevitavelmente nos recorda as suculentas “madeleines” de Em Busca do Tempo Perdido; no Brasil, no livro Cordilheira do paulista Daniel Galera, salivei com os alfajores que salpicam as quase 200 páginas e brincam de pique-esconde com os capítulos; na biografia lançada no ano passado de Lucian Freud fiquei instigada com a importância do café da manhã no londrino Clarke’s para o pintor e cheguei a sonhar com um bule quentinho de Earl Grey acompanhado de pães de passas com ovos mexidos, torradas e mingau; em A Obscena Senhora D. da escritora Hilda Hilst cometi a gafe de me desviar da história (maravilhosa, por sinal) ao me distrair com os 33 grifos que fiz relacionado a comida; não posso esquecer do intrigante jantar de natal de Auggie Wren personagem do filme Cortina de Fumaça, proveniente do Conto de Natal de Auggie Wren do escritor Paul Auster: frango assado, sopa de legumes, uma porção de salada de batata, um bolo de chocolate e garrafas de vinho; e, para encerrar dramaticamente antes que fique dias citando trechos atrás de trechos… o impacto e a emoção que uma descrição sobre um pedaço de carne (sagacidade do autor. um detalhe tão miúdo mas tão relevante) me causou no momento mais trágico de Coração Tão Branco do espanhol Javier Marías, me comoveu fortemente.

Decorrente dessas minúcias, particularidades, grifos em toda sorte de livros e de como tudo isso me sensibilizava e atiçava minha curiosidade de uma forma inexplicável, comecei a pesquisar e ler livros de alimentação, culinária, gastronomia, biologia e uma infinidade de assuntos que permeiam os alimentos e bebidas. E assim foi e assim vim. 🙂

Cristiane Martins é, antes de qualquer coisa, uma entusiasta dos livros. Se dedica atualmente aos estudos históricos, políticos e sociais da alimentação. Divide com a comida a paixão pelo fotojornalismo, tendo como inclinação os documentos antropológicos e os registros de áreas de conflitos. Acesse seu blog!

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